sexta-feira, 12 de junho de 2009

Vovó Brand

Há uma pessoa que se sobressai de todas as outras que exerceram influência em minha vida: minha mãe, conhecida como vovó Brand. E eu me refiro a ela dessa maneira com muito carinho e amor. Ao chegar à velhice, minha mãe já havia perdido grande parte de sua beleza física. Ela foi uma jovem muito bonita – tenho fotografias dela para comprovar -, mas sua beleza clássica desapareceu. As condições inóspitas de vida na Índia, aliadas a quedas por fraqueza nas pernas e suas lutas contra o tifo, disenteria e malária reduziram-na a uma figura magra e corcunda. Os anos de exposição ao vento e ao Sol enrijeceram a pele do seu rosto, dando-lhe um aspecto de couro, e causaram rugas tão profundas e extensas como eu nunca vi em nenhum outro ser humano. Ela sabia muito bem que sua beleza desaparecera havia muito tempo e, por esse motivo, recusava-se terminantemente a ter espelhos em casa.


Aos 75 anos, enquanto trabalhava nas montanhas do sul da Índia, minha mãe levou uma queda e fraturou o quadril. Ficou caída a noite inteira no chão, sofrendo dores, até que um trabalhador a encontrou na manhã seguinte. Quatro homens a transportaram montanha abaixo em uma maca feita de corda e de madeira e a colocaram dentro de um jipe, que rodou quase 250 quilômetros por estradas esburacadas. (Ela já havia feito essa viagem após ter caído do cavalo, de ponta-cabeça, em uma trilha rochosa na montanha, e também já havia sofrido uma leve paralisia abaixo dos joelhos).


Logo a seguir, programei uma visita à minha mãe em sua casa de taipa na montanha a fim de convencê-la a parar de trabalhar. Na época, ela só conseguia andar com ajuda de duas varas de bambu mais altas que ela, fincando as varas no chão e levantando as pernas a cada passo doloroso, para impedir que seus pés paralisados arrastassem no chão. Apesar disso, ela continuou a viajar a cavalo e acampar em povoados longínquos para pregar o evangelho, tratar dos enfermos e extrair os dentes podres dos camponeses.


Cheguei munido de argumentos convincentes para que ela se aposentasse. Não era seguro morar sozinha em um lugar tão distante, tendo de viajar durante um dia inteiro para encontrar assistência médica. A falta de equilíbrio e as pernas paralisadas representavam-lhe um risco constante. Ela já havia sofrido fraturas nas vértebras, nas costelas e no fêmur, pressão nas raízes dor nervos da coluna dorsal, concussão no cérebro e infecção grave na mão.


- Até mesmo as pessoas mais sadias do mundo precisam aposentar-se quando chegam aos 70 anos – eu disse, com um sorriso. – Que tal a senhora morar perto de nós, em Vellore?


A vovó Brand refutou meus argumentos por achá-los absurdos e repreendeu-me. Quem daria continuidade ao trabalho? Não havia outra pessoa nos limites da montanha que pudesse pregar, curar feridas e extrair dentes.


- De qualquer modo – ela concluiu -, de que adiantaria preservar meu velho corpo cansado se ele não for usado onde Deus necessita de mim?


Ela continuou lá. Dezoito anos depois, aos 93 anos de idade, ela deixou, com relutância, de montar seu pônei, porque estava caindo com muita freqüência. Os dedicados camponeses indianos começaram a transportá-la de uma cidade para outra em uma rede. Depois de mais dois anos de trabalho missionário, ela morreu, com 95 anos. Foi enterrada, a seu pedido, em uma cova rasa e enrolada em um lençol usado – sem caixão. Ela abominava a idéia de gastar madeira preciosa em caixões. E gostava do simbolismo de retornar seu corpo físico à terra ao mesmo tempo em que seu espírito era libertado.


Uma das últimas e mais fortes lembranças que guardo de minha mãe está no povoado das montanhas que ela amava, talvez a última vez que a vi em seu ambiente – sentada em um muro baixo de pedra que circunda o povoado e cercada de gente por todos os lados. Todos estão ouvindo o que ela tem a dizer sobre Jesus. Eles movimentam a cabeça em sinal de incentivo e fazem perguntas profundas, querendo aprender mais. Os olhos úmidos de vovó estão brilhando, e, em pé ao seu lado, posso visualizar o que ela deve estar enxergando através da vista enfraquecida: rostos com ar compenetrado olhando com absoluta confiança e afeição para aquela mulher que eles aprenderam a amar.


Apesar de minha relativa juventude e vigor e de meus conhecimentos especializados na área da saúde e em técnicas de agricultura, sei que jamais teria condições de atrair esse tipo de devoção e amor que ela conseguiu atrair. Eles estão olhando para um rosto marcado pelas rugas, mas sua pele enrugada torna-se diáfana e ela irradia um espírito fulgurante. Para eles, ela é linda.


Vovó Brand não precisava de um espelho feito de vidro e cromo polidos; ela possuía os rostos cintilantes de milhares de camponeses indianos. Sua imagem física debilitada tinha uma só finalidade: tornar a imagem de Deus ais reluzente, como se ela própria fosse um faro.


Escrito por Paul Brand e extraído do livro “Histórias para o coração da mulher”, organizado por Alice Gray (Editora Hagnos, 2003).

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